Alguma poesia

A flor

A flor começa com o dia.
A rosa, opressa pela noite,
na luz expele seus demônios
e sonha o ser nos quadros.
No ar, alheia sintaxe,
tintas de pó, ouro e luz,
anjos de cores voam
com corcovas de dragões
e bífidas línguas serenas.
O mundo escuro alegra a rosa
sublunar
liberta em reino de luz acrisolada.

 

Girassóis de água

Girassóis de água
evocam etéreos gênios
em raios de estrelas.
A sombra se desfaz em giros
e a noite e a clara luz
de encantamento
divertem-se rindo.

 

As palavras

As palavras, imunes à lembrança,
flutuam na noite de coral,
inquietas hamadríades ao sabor dos ventos…
Escorregam pelos canteiros,
despem-se em arpejos vegetais,
borboleteiam a luz, antecipam as mariposas
e se deixam embalar nas ondas, turmalinas.
Na água branca, no cisne incolor,
por trás da paisagem, como um poema de dor.
E lhes foge apenas a esfíngica morte
no grito de animal inventado,
fabular e inominável.
Mas são delas os lampiões apagados.

 

Passageiros

Há promessas iguais no joio ocioso,
no trigo revelador,
no peso da tarde sobre os campos.
O tempo-lagarto, imantado na areia,
foi gerado e esquecido
pelo deserto que o circunda?
Basta saber que há algo entre as estrelas,
breve e imortal como o sussurro duma brisa
e a noite se expande noutros corpos
sugerindo a alguns a caligrafia dos sonhos.

 

Paradoxo

Amo e desprezo a vida em mesmo acento
e, como o nauta, irmão da tempestade,
abjuro as ondas, escarneço o vento,
irmanado à ciclópica Vontade.

Desconheço o futuro e meu passado
é onda, brisa, fumo, sonho altivo…
mas houve tanto instante ensolarado
e tanta formosura ainda vivo!

E nessa dupla sorte eu venço os dias;
ora aspiro à luz, ora indago a treva,
buscando unir opostas harmonias.

Em amor e desprezo a alma se inflama
e, qual aparição, ao céu se eleva
como a calçada verte o céu na lama.

 

Sob a lua vagueia

Sob a lua vagueia estranha corte,
heróis em armas, pálidos aedos,
brancas donzelas saltam do arvoredo
e, em fúria, os lobos uivam para a morte.

“Quem sois, visões etéreas sob olmedos?” –
no campo lhes gritei em meu transporte –
“Conduzireis aonde o altivo porte?”
Silêncio… e o vento canta nos rochedos.

E quis me aproximar, seguir meu fado,
então um velho rei paramentado
bradou: “Somos o exército dos sonhos,

afastai-vos, mortal, pela outra via!”
– “Mas no altar eu comungo da Poesia!”,
disse, e o rei acedeu co’o olhar tristonho.

 

Yorick

Tu tocavas, palhaço, aquele banjo,
te acreditando móvel das esferas,
imortal elo desta e doutras eras,
n’altos voos de swedenborguianos anjos!

E a loucura fazia o seu arranjo
e a morte, o dúbio canto em que te esmeras,
pobre pintor de magas atmosferas,
o caos extrai de ti mil desarranjos!

Contudo eu cri em teu sonambulismo,
nas lágrimas pendidas de teu canto
(pérolas a adornar-te o negro manto),

sentindo – se o querias – mais fundo o abismo.
Teu crânio, agora, bordas irisadas,
oferta à vida estranhas gargalhadas.

 

Riso crescente

Diabólico riso a noite traz,
sorriso lácteo em meio à brisa escura.
Nem as nuvens demovem-no; mordaz,
gargalha à feia morte e à formosura.

Dos cínicos, a sátira desfaz
o sorriso de prata das alturas.
E, tocando o bordão das coisas más,
o astro sorri de nossas desventuras.

Se além da escuridão rosto não vejo,
ouço a sinistra lua que consola
com seus loucos e mágicos arpejos.

Tudo é risível! Tudo é pequeneza!
A virtude profunda se estiola
no imenso gargalhar da Natureza!

 

Proteu

Ergo a vista ao profundo céu agora
onde, no ar, digladiam mil brancas hostes,
retrato do que és e do que foste,
erguendo as mãos ao sangue das auroras.

Não somos mais os mesmos, os de outrora
(resta-nos a canção a confundir
o silêncio das coisas no porvir),
o vento leva as nuvens sem demora.

Quando os anjos da morte ressoarem
as pútridas cornetas pelos ares
e em teu batel vagares mansamente

o cintilante dorso da onda ausente,
contempla a natureza e te desfaz,
mudaste sempre, sempre mudarás.

 

Abditae causae

Fraco mortal, que aspiras às sutis essências,
ao círculo das formas, ser das aparências,
qual cristalina água, a perscrutar o seio
do que há intangível, à matéria em meio,
estás cansado e choras (só te embala o vento
o ecoar da ampulheta num abismo lento)
e, cerzindo a tristeza triplos espantalhos,
ousas vibrar ainda o alaúde em atalhos.
Porque por mais que busques a tudo o silêncio
(o silêncio é cantar para os astros suspensos,
a música inaudível das esferas vastas –
tem-se a impressão mas nunca o som e a nota casta),
cantando seguirás, mesmo em padecimento
de, na verdade, não haver ouvido atento.
E o entardecer se expande em fogo na floresta;
há vária explicação e, também, vária festa:
é bom ouvir às árvores e aos animais,
às estéreis montanhas que exsudam cristais,
aos gemidos dos ventos adensando a trama
das águas nos rios, de verdes bosques às ramas;
como cabrito atado à mãe e à dura teta,
se entretém os infantes co’ agrestes cornetas…
toda a natura segue a prumo seus alvitres,
somente o ser pensante e o poeta, estes biltres,
apartam-se de tudo, buscando esse tudo –
e responde o universo só um grito mudo.
São necessários sismos à rija estrutura,
conhecidos venenos a aprestar as curas;
assim o canto irrompe e o solitário vate
encetará co’a própria lira um vão combate
(oleiro do vazio, em sonhos se desdobra,
que decerto é ilusão alquimia e grã obra;
por mais difícil que seja, crê na aventura –
que a razão é a loucura da própria loucura);
porém à força mesmo de enformar os ventos
mostrarás quão profundos são os teus lamentos.

 

 


©Copyright André de Sena (Poemas registrados, direitos do autor, não é permitida a reprodução sem prévia autorização).